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Revisitando Darcy Ribeiro no bicentenário da independência: uma resenha de “O Povo Brasileiro"

Atualizado: 25 de set. de 2023

No bicentenário da independência, relembrar Darcy Ribeiro é essencial para compreendermos o passado, presente e futuro do Brasil.



No bicentenário da independência (1822-2022), revisitar Darcy Ribeiro é uma tarefa para todos. Especialmente pelas comemorações em 2023 da independência do Brasil na Bahia a partir das festividades populares do 02 de julho. Na ocasião, era possível sentir no ato e no olhar do povo baiano, o orgulho da resistência negra e guerreira espalhada do recôncavo à capital. Contudo, para além da alegria festiva, um sentimento pairava no ar: afinal, o Brasil deu certo? Quais as motivações por trás de tanta desigualdade? Como será o Brasil do futuro?


Para Darcy Ribeiro, antropólogo, político e educador brasileiro (1922-1997), o mais importante para além de enfrentar um passado marcado pelas violências coloniais e as desigualdades sociais, é vislumbrar o Brasil do futuro: "o mais importante é inventarmos o Brasil que queremos e faze-lo acontecer. Como uma das civilizações do mundo, sem copiar ninguém, utilizando toda a potencialidade mestiça do nosso povo" (RIBEIRO, 1995, p. 325).


Em sua principal obra "O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil" (1995), Darcy Ribeiro reconstrói os cinco séculos de história do país, contando o passo a passo que deu origem ao povo brasileiro. O autor aponta para um evento determinante na formação do que hoje se chama de Brasil, sendo o processo de colonização o responsável pelo encontro dos três povos, cada qual com sua matriz étnica e cultural, que por fim deram forma ao povo brasileiro. Compunham os três povos matrizes, os indígenas (povos originários) com suas terras invadidas pelos lusitanos; os europeus colonizadores (especialmente portugueses); e os povos africanos (de diversas regiões de África, especialmente da cultura Bantu), esses últimos, deslocados a força na condição de escravizados pelos povos lusitanos (RIBEIRO, 1995, p. 25).


Segundo Darcy, estas três matrizes étnicas passaram no Brasil por um intenso processo de desaculturação e miscigenação, ocorrendo a partir do convívio e do estabelecimento de relações, na maioria das vezes forçadamente. As primeiras interações registradas ocorreram entre os povos indígenas e os lusitanos, principalmente a partir de uma ética “cunhadista” de escambo, sendo o “cunhadismo” a instituição de origem do povo brasileiro. As mulheres indígenas jovens eram trocadas por ferramentas e utensílios a partir de acordos firmados entre as lideranças indígenas e os colonizadores. Foram a partir destas relações que nasceram o que o autor chama de “brasilíndios” ou “mamelucos”, nem considerados indígenas, nem muito menos europeus (RIBEIRO, 1995, p. 63).


Já em um segundo momento, o “cunhadismo” cede lugar ao comércio internacional de escravos, originando o segundo momento de interação étnica. Este fenômeno permitiu o estabelecimento de relações, novamente de forma forçada, entre os povos africanos e os lusitanos, que no Brasil deram origem aos “afro-brasileiros”. Assim como os “brasilíndios”, os “afro-brasileiros” não eram considerados nem africanos, nem europeus, eram “ninguém”. Do surgimento de “brasilíndios” e “afro-brasileiros” e da sua “ninguendade” é que nasce uma massa chamada de nova gente, nasce dessa interação o "povo brasileiro" (RIBEIRO, 1995, p. 63).


Portanto, a cultura e o povo do Brasil seriam o resultado de um processo de miscigenação e de tessitura de uma colcha de retalhos de proporção continental. Este processo possibilitou ao longo dos anos o surgimento de ao menos cinco Brasis distintos: 1. O Brasil caboclo, a partir das relações “cunhadistas” entre povos indígenas e europeus na economia extrativista da Região Norte; 2. O Brasil caipira, se estabelecendo no interior das Regiões Sudeste e Centro-Oeste, com uma economia de agricultura familiar e forte catolicismo; 3. O Brasil sertanejo, se desenvolvendo nos sertões a partir de uma escassa economia pastoreira e familiar; 4. O Brasil sulino, que se divide entre gaúchos, matutos e gringos, no Sul do Brasil; 5. O Brasil crioulo, se desenvolvendo no litoral do Nordeste a partir da economia açucareira, escravização e forte presença negra (RIBEIRO, 1995, p. 199).


Os brasileiros se sabem, se sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia. Essa unidade não significa porém nenhuma uniformidade. O homem se adaptou ao meio ambiente e criou modos de vida diferentes. A urbanização contribuiu para uniformizar os brasileiros, sem eliminar suas diferenças. Fala-se em todo o país uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais. Mais do que uma simples etnia, o Brasil é um povo nação, assentado num território próprio para nele viver seu destino (RIBEIRO, 1995, p. 18-19).


Diferente do que se tem difundido ao longo da história, o Brasil não é feito de uma gente pacífica, pelo contrário, a nossa história tem sido permeada por intensos conflitos de diferentes características. As guerras do Brasil foram iniciadas no choque entre as três etnias matrizes, que com o passar do tempo evoluíram para guerras de ao menos três tipos: A. Guerras classistas, entre aqueles que detinham os meios de produção e aqueles que eram explorados (a exemplo da Guerra de Canudos, 1896); B. Guerras inter-raciais, como no exemplo da Cabanagem entre “luso-brasileiros” e “brasilíndios” no Norte do Brasil (1835); C. Guerras étnicas entre “afro-brasileiros” e “luso-brasileiros” a exemplo da Guerra do Quilombo dos Palmares (1695) (RIBEIRO, 1995, p. 127).


No plano econômico, um dos mais profundos desafios da nação, segundo Darcy, é fazer com que as nossas riquezas (natural e humana) estejam a favor do próprio desenvolvimento nacional, não enchendo os cofres estrangeiros. Desde a empreitada colonizadora, se vem utilizando do Brasil enquanto uma empresa prodigiosa e lucrativa, mas não para a sua gente. Darcy Ribeiro, um brasileiro apaixonado pelo Brasil, nos ensina a importância de conhecermos profundamente nossa nação, mais do que conhecer a realidade do velho ocidente (RIBEIRO, 1995, p. 133).


Em síntese, “O povo brasileiro” apresenta em seus primeiros capítulos elementos que remontam o “choque de mundos” presente nas primeiras interações entre portugueses e indígenas por início da colonização, bem como as disputas entre os colonos e os padres missionários da igreja católica, com papel central na forma como se deu a colonização no Brasil. O autor, ainda aponta para o processo que desembocou no ato de se lançar ao mar dos ibéricos rumo ao novo mundo. Compõe ainda as análises iniciais de Darcy, o exame de algumas disparidades e semelhanças entre os processos de colonização do Brasil e de outros países latino-americanos, bem como da América do Norte.


Com o avançar dos capítulos, é possível verificar como se deu o processo de transição entre a escravização dos povos indígenas, passando para o tráfico internacional de africanos e as guerras de resistência dos povos colonizados por consequência da exploração. Darcy alça mão de uma profunda análise antropológica do “brasileiro se lançando a aventura de se fazer a si próprio enquanto povo”, que acaba por resultar, na contemporaneidade, nos cincos brasis e na formação de uma cultura original, única e plural, como nunca ainda se tinha visto. Cultura essa que guarda em si as origens do povo desta terra, uma “nova civilização nos trópicos”.



Em sua obra máxima, Darcy Ribeiro nos brinda com a brasilidade constituinte da gente brasileira, para o autor não poderíamos adentrar o século 21 sem “O povo brasileiro”, afinal o mundo passaria por profundas transformações cada vez mais rápidas. Como o autor já as previa, fez gosto em concluir em seu último ano de vida o que viria a ser o seu principal livro e a última peça de uma série de seis obras. Darcy a concluiu pelo seu amor profundo pelo Brasil e por compreender a importância de sabermos as nossas origens e o que somos (principalmente para os jovens), para que assim pudéssemos dar seguimento ao nosso processo inconcluso de “fazimento” desta nação.


Revisitar Darcy Ribeiro no bicentenário da independência, pode nos auxiliar a compreender nossa formação étnica e cultural, mas sobretudo o processo de "fazimento" do Brasil até aqui, bem como as origens das nossas tantas mazelas sociais que compartilhamos. “O povo brasileiro” nos oferece uma série de pistas para projetarmos um futuro tal como queremos, um Brasil do futuro que de fato se volte ao desenvolvimento do seu povo e ao enfrentamento das iniquidades sociais. Se utilizando das imensas riquezas em prol da qualidade de vida da sua população, fazendo isso ao passo que buscamos a superação do colonialismo e do racismo sistêmico.


REFERÊNCIAS:


RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3 ed. São Paulo: Global. 2015 [1995].

 

Mateus dos Santos Brito é membro do GPPEC/UNIFACS-CNPq, mestrando em Saúde Coletiva pelo ISC/UFBA. Contato: mateusbrito@ufba.br

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